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CRÓNICA DESDE LISBOA

O "barco do aborto " en Portugal

O goberno portugués chegou a enviar navíos de guerra para impedir a entrada do Women on Waves en Portugal. Queríase prohibir así a entrada do "barco do aborto" en Portugal", un país no que só en caos extremos se permite a interrupción voluntaria do embarazo. Bruno Dias, cronista para TEMPOS Novos desde Lisboa, analiza a relidade do aborto á outra beira do Miño.

- 10:42 02/11/2004
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Quando o desastre do Prestige estava consumado e o crude destruía as costas da Galiza, o ultra-direitista ministro da defesa de Portugal, Paulo Portas, afirmou em entrevista que estava convencido de que foi nossa senhora de Fátima que livrou Portugal de piores consequências, mantendo a mancha negra longe das costas de Portugal. Na altura estas palavras, ao mesmo tempo que expunham o ministro ao ridículo, chocavam pela falta de solidariedade com os que foram afectados pelo desastre, afinal tão próximos de nós.

Acontece que nas últimas semanas, o Ministro da Defesa encalhou noutro barco, que desta vez veio trazer à tona um dos assuntos mais discutidos na política Portuguesa dos últimos anos, o aborto. Foi a altura de Paulo Portas pagar o favor à virgem Maria e proibir a entrada do navio da organização holandesa Women on Waves, colocando até dois navios de guerra a vigiar o barco do aborto.

Lexislación restrictiva

A intenção do navio da Woman on Waves (http://www.womenonwaves.org/) de atracar em Portugal veio reacender um debate que ainda há menos de um ano havia estado na ordem do dia. Portugal tem, como se sabe, uma lei altamente restritiva em relação à prática do aborto, que só é consentido em casos limite, como risco de vida para a mãe, malformação do feto e violação. Houve um referendo em 1998 para mudar esta lei e descriminalizar a prática do aborto, referendo em que ganhou o "Não", ou seja a opção de manter a criminalização do aborto. Mas a vitória foi tangencial, e a abstenção tão grande que o resultado do referendo não foi vinculativo, de acordo com a lei portuguesa (que exige uma participação de pelo menos 50% do universo eleitoral).


Os posicionamentos políticos

Os que defendem que se trata de uma lei iníqua têm tentado mudar este estado de coisas, exercendo pressão directa sobre governo e parlamento ou tentando lançar um novo referendo. No ano passado foram recolhidas mais de 100 mil assinaturas nesse sentido, mas a maioria de direita e de extrema-direita que governa Portugal recusa qualquer mudança na legislação, principalmente o parceiro mais à direita da coligação, o CDS-PP, o partido que mais tem militado pela criminalização das mulheres que cometem aborto.

Mas a posição de muitos dos que defendem a continuação da lei nos moldes em que existe actualmente é extremamente dúbia. Defendem que o aborto é crime porque acaba com uma vida, mas não desejam ver as mulheres que o cometem na barra do tribunal, devido à dor e à humilhação em que tal situação as coloca. Afinal perdoar é cristão e a atitude do estado não deve ser a de castigar, mas sim de acolher e aconselhar a ovelha tresmalhada. É que o argumento sociológico é um dos que bate mais fundo nas consciências, tanto da direita como da esquerda.

A inxustiza social

Como em Espanha se podem fazer abortos com acompanhamento médico, basta a quem tem possibilidade económica para tal que se desloque a Badajoz para fazer um aborto em segurança. Quem não tem dinheiro tem que se sujeitar a fazê-lo em Portugal, muitas vezes em péssimas condições, que põem em risco a saúde da mulher, na sua capacidade de ter filhos no futuro e até na sua vida. Claro que existem clínicas clandestinas que fazem abortos em segurança, mas o risco é outro: o de serem apanhadas pela polícia e levadas a julgamento. As vítimas destes julgamentos, têm sido, não tanto as mulheres que abortam, mas sim as enfermeiras e médicos que ajudam as mulheres a abortar. Evita-se assim o que seria extremamente impopular, a prisão de mulheres pobres, ao mesmo tempo que se faz cumprir a lei e se desincentiva a prática.

O problema com o argumento sociológico é que, perante ele, podemos perguntar-nos legitimamente: então se a mulher não for pobre, tem direito a abortar? E se ela tiver condições económicas para ter um filho, mas não o quiser? A esquerda aqui deve ser o mais clara possível - o direito de abortar não está vinculado à declaração de rendimentos. É por isso que soa a falso o argumento da esquerda a respeito da vinda do navio das Woman on Waves, de que promoveria o debate à volta do assunto e de que isso só por si seria positivo.

O compromiso coas mulleres

O que temos é o desfilar de lado a lado, dos mesmo argumentos, com a esquerda posta à defesa, a ser obrigada a repetir ad nauseum que somos todos contra o aborto e que o que se está é a defender as mulheres pobres de uma situação de injustiça social. O que tem que ser afirmado é que se está a lutar pelas mulheres. Ponto. Sem qualquer predicado, pobre ou rica, saudável ou doente. Não é exigível que, em razão das características fisiológicas com que nasce metade da humanidade, lhe sejam exigidas obrigações especiais, como a de levar uma gravidez ao fim.

Como afirma o antropólogo Miguel Vale de Almeida, o útero da mulher não é propriedade pública. Do mesmo modo, devem evitar repetir-se as discussões sobre o feto e o embrião serem ou não "vida humana", porque do ponto de vista biológico é inequívoco que são. O que deve ser realçado é que estamos perante duas concepções de vida radicalmente diferentes e inconciliáveis. Uma que defende que a partir da concepção estamos perante uma vida humana, que é a posição dos sectores mais conservadores da igreja católica apoiados por parte significativa das elites médicas; outra que tem da vida uma concepção social e relacional.

Uma vida humana é aquela que é investida de significados e afectos que só se desenvolvem na relação com os outros. O que é estranho é que de entre estas duas concepções aquela que a lei consagra seja a concepção religiosa. E que os mesmos que vociferam contra a teocracia do Irão e dos "talibans" não se incomodem com o facto de que, no século XXI, num estado que se diz laico, a religião se continue a estar inscrita na lei.

O asistencialismo beato da dereita

A direita, perante a cada vez mais patente insatisfação da população com a lei, adoptou como bandeira o assistencialismo beato, isto é, o que eles dizem ser o combate às causas do aborto. É claro que o fazem ao mesmo tempo que se opõem à educação sexual nas escolas, mas defendem o planeamento familiar e o apoio às mulheres grávidas para que possam levar a gravidez até ao fim. O que se pede à esquerda é a coragem de afirmar que prevenir é preciso, educar é essencial, mas se uma mulher tiver uma gravidez indesejada, deve poder abortar num estabelecimento de saúde em condições de segurança, seja qual for a sua condição e quais os motivos que a levem a tomar essa decisão. Por isso é que, mais do que qualquer debate, é de saudar a coragem de Rebecca Gomperts, da Women on Waves, que em plena televisão portuguesa ensinou como é que se pode abortar com um medicamento para a úlcera estomacal.


O artigo completo, na edición impresa de TEMPOS Novos (nº 89, outubro 2004)


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