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Estigma

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Estigma

Um artigo da escritora e terapeuta, Concha Rousia, da Academia Galega da Língua Portuguesa

Soube que estamos indo para atrás quando notei nas mãos duas marcas vermelhas; estava eu num conhecido café de Compostela e na TVG falava a líder de Galicia Bilingue; inicialmente assustei-me, depois entendi que aqueles eram os estigmas do que noutrora foram marcas frescas da vara de salgueiro... A memória do corpo é difícil de enganar, ela sabe como tirar da memória da mente. Foi assim que me vi como a meninha de sete anos de mãozinhas pequenas e algo chamuscadas da geada, pois eram tempos de arrancar os nabos da neve sem luvas... e vi como as pequenas e adoecidas mãos povoavam o gris encerado com a frase ‘no hablaré gallego en la escuela'. Fora os meus vizinhos jogam a bola esquecidos de mim, outro dia serei a que esqueça.... Nessa imagem veio outra que hoje me resulta mais desagradável, uma em que todos os miúdos e miúdas da escola rimos do Miro, era o seu primeiro dia a aprender a se defender das perguntas dum professor que também se ria dele...

Enviada por OBSERVADOR OBSERVADOR o 29/05/2009 23:33

- Cuantos años tienes?
- Três, e o da ovelha roxa, que pariu ontem, quatro...

Os risos que hoje sinto doem mais do que as marcas da vara de salgueiro, mesmo que deixassem as mãos a arder... Disso há mais de trinta anos, mas a memória, sabido é, não se guarda em ordem cronológica e sim em função da carga emocional da experiência vivida; é por isso que estes risos são de ontem o mesmo que os golpes da vara... um ontem que acordou como ‘hoje’ no ecrã da TV. E aqui devo admitir que não tenho palavras para qualificar a realidade se não uso a palavra ‘violência’: violência de estado, violência linguística; e isso me levaria a desejar uma ordem de afastamento do agressor, mas não tenho direito como teria se eu fosse considerada vítima de violência de género, mas frente à violência linguística, que nas mãos do estado castelhanizador vimos padecendo historicamente, não tenho direitos. Nem temos direito a falar nesses termos, só nos resta desligar a TV ou sair do café e esquecer tudo, ou tentar esquecer. Senti medo, falei com conhecidos que sentiram o mesmo medo, uma frase de uma amiga fica no ar dos meus ouvidos hoje: ‘As velhas cicatrizes me sangram todas’ e choramos, não vou negar isso, misturando o pranto dos sete anos com o dos quarenta e tal de hoje... e a nós não há um ‘juiz Garzón’ que nos queira fazer justiça, talvez porque não há um juiz ao que as nossas feridas lhe doam... Achei paz numa gravura de Castelão.

Nesta altura de meu relato quero reivindicar os que abandonam, os que deixam de falar a nossa língua, reivindico-os também como meus, reivindico-os também porque eles, na sua maioria, mesmo sem serem conscientes disso, são vítimas dessa violência que os levou, a eles ou aos seus pais, ou aos seus avós a desistir desta luta desigual frente ao Estado... Desistir é o único caminho para deixar de se sentir vulnerável; eles não devem ser culpados, eles também necessitam ser entendidos, mesmo que por vezes os que nunca desistimos tenhamos que sofrer o seu rejeitamento, talvez por nós lhes lembrar a vulnerabilidade doutrora que tanto querem esquecer.

Umas considerações finais, que eu chamo de curativas, porque mesmo não sendo nós os culpados das feridas temos a responsabilidade de as curar. Todas as formas que levamos tentado não nos têm dado muito bom resultado. Fica claro que o Estado castelhanizador nos quer, linguisticamente falando, mortos, e também vazios, porque em troca da substituição de língua nada oferece de melhor, nem valores mais nobres, nem costumes mais cívicos... oferece talvez mais moscas e mais bosteiras e sangue de touro, menos amor à chuva, e um pouco menos de verde... Mas também digo que seguirmos dando cabeçadas contra esse muro de lamentações para convencê-lo de que deixe de nos esmagar não vai produzir nenhum resultado positivo. O muro consegue é que lhe dediquemos a nossa energia a pensar que o podemos combater na luta frontal. Essa é a estratégia errada, pretender que o Estado garanta os nossos direitos quando o que quer é eliminar a nossa língua é absurdo, é como deixar o lobo guardando as ovelhas... A nossa língua é nossa; devemos cuidá-la e curá-la nós; devemos deixar de lhe oferecer a nossa valiosa energia a luta com o Estado, e dedicá-la a fazer florescer a nossa língua... Virar costas ao muro, negar-lhe o direito a engolir a nossa força que nele morre amortecida. Nós temos um mundo inteiro no que crescer, um mundo que fica além esse muro, um mundo chamado Lusofonia no que a nossa língua pode crescer mil vezes por cima desse muro, pode crescer até onde o desejar mesmo, e só depois enfrentar-se ao muro.


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